Rodinei Crescêncio/Rdnews
A pesquisa científica voltada ao estudo e à conservação das onças-pintadas do Pantanal mato-grossense avançou mais um patamar. Realizado na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Sesc Pantanal, em Barão de Melgaço (a 109 km de Cuiabá), o monitoramento de 39 felinos revelou que a espécie possui áreas de vida bem delimitadas, comportamento fortemente territorial, hábitos predominantemente solitários e interações específicas entre indivíduos aparentados, evidenciando também a resiliência desses grandes predadores. Os dados embasam a elaboração do “Guia de Identificação das Onças-Pintadas da RPPN Sesc Pantanal”.
Em entrevista ao #rdnews, o pesquisador responsável pelo projeto, Guilherme Servi, e o gestor da reserva, Alexandre Eneut, descreveram o processo de conhecer os maiores felinos das Américas, caracterizados como “caçadores de emboscada”, como uma maneira de preservar o que se tem dentro do próprio território e aprender, diariamente, maneiras de manter o convívio saudável com os animais.
“Durante os primeiros meses tem a fase de amamentação e depois o ensino do estilo de caça e das habilidades necessárias para sobreviver”
Guilherme Servi, pesquisador
De acordo com Guilherme, além das áreas de vida bem delimitadas e do territorialismo citado, a pesquisa identificou que as onças-pintadas possuem e mantêm interações específicas com parentes, principalmente com irmãos, como as coalizões formadas entre machos da mesma ninhada. O estudo também observou padrões reprodutivos, nos quais as fêmeas permanecem por curtos períodos com diferentes machos, e comportamentos maternos, com filhotes que acompanham a mãe por mais de um ano, aprendendo técnicas de caça e sobrevivência. Essas informações, obtidas principalmente por meio de câmeras armadilhas e monitoramento pontual por GPS, ajudam a revelar como os felinos se organizam, se deslocam e se relacionam dentro da reserva.
Gerado por IA
O uso das câmeras foi iniciado ao final de 2020, logo após uma das piores secas já vistas ter tomado o Pantanal. A maior parte dos registros foi realizada em 2021, mas a linha temporal que delimitou a pesquisa vai até 2023. Guilherme revela que foram 165 câmeras armadilhas utilizadas, que ao longo dos três anos capturaram mais de 300 mil vídeos.
Territórios
Segundo Guilherme, parte dos indivíduos identificados ao longo do monitoramento pode não ter se fixado de forma permanente na área estudada. Ele explica que algumas onças registradas pelas armadilhas fotográficas estavam em fase de dispersão ou vagância, em busca de um território para se estabelecer, o que ajuda a explicar o baixo número de registros de certos animais.
“Passam vários machos nos mesmos locais, com uma diferença temporal pequena, e, aparentemente, a gente não registra muitos conflitos”
Guilherme, pesquisador Servi
“Pode acontecer de alguns indivíduos que a gente registrou na câmera serem vagantes ou dispersantes. Eles estão procurando uma área de vida para se estabelecer e, por acaso, passaram por ali, mas não se fixaram naquela região. Então, a gente tem algumas onças com poucos registros. Pode ser que tenha sido o caso de alguns que estavam passando pela RPPN ou, enfim, nasceram por ali e foram procurar o seu território em outro lugar. Pelas câmeras, é um pouco mais difícil a gente conseguir estabelecer o tamanho da área de vida de um indivíduo de onça.”
Apesar de a literatura científica apontar fortemente as onças-pintadas como animais territorialistas, os dados obtidos no Pantanal, especialmente na região da RPPN e em áreas como Porto Jofre, indicam um cenário mais complexo. Guilherme destaca que há uma grande sobreposição entre as áreas de vida dos indivíduos, com registros frequentes de vários machos utilizando os mesmos espaços em intervalos curtos de tempo, sem evidências claras de conflito.
Kethlyn Moraes
Esse padrão levanta novas questões sobre o nível de tolerância entre as onças e se essa convivência está relacionada ao grau de parentesco — um aspecto que, segundo ele, ainda precisa ser aprofundado.
“Como na RPPN a gente tem algumas zonas um pouco mais quentes, passam vários indivíduos, vários machos, nos mesmos locais, com uma diferença temporal pequena, e aparentemente a gente não registra muito conflito. Obviamente isso pode acontecer sem a gente registrar, é perfeitamente possível, mas naqueles moldes de defesa, firmemente na área de vida, e do respeito mútuo que a gente acompanha em outras espécies diferentes, eles não cruzam o seu território de vida, eles não se sobrepõem. Já as onças no Pantanal Norte, aparentemente é uma festa, elas estão sempre sobrepondo, passando na área de vida um do outro”, pontua.
“A média que eles ficam junto com a mãe é cerca de um ano e meio. Pode acontecer de se dispersarem antes ou ficarem mais tempo”
Guilherme Servi, pesquisador
O pesquisador também observa diferenças entre os sexos: os machos tendem a ocupar áreas de vida maiores e se deslocar mais, enquanto as fêmeas apresentam territórios menores e maior fidelidade ao local de nascimento. Guilhere explica que um estudo mais profundo com monitoramento via colares de GPS poderia detalhar melhor essas definições de territórios. No entanto, o GPS só foi implantado em uma delas: Niti Cáre, que foi acompanhada por cerca de sete meses com o aparelho de localização.
“Para o guia, o que bastava era um vídeo ou uma foto dentro desse período e dentro da reserva. […] Pelas câmeras é um pouco mais difícil da gente estabelecer o tamanho da área de vida de um indivíduo de onça, porque elas não compreendem com mais confiabilidade, mais acuidade”, pontua o pesquisador.
Mayke Toscano
Comportamento e convivência
Outro dado interessante observado, foi que as onças-pintadas convivem de uma maneira muito específica com outros felinos com quem possuem um grau de parentesco. As chamadas coalizões, por exemplo, que acontecem geralmente entre machos filhos de uma mesma prole, que se unem por determinado tempo e caminham juntos em suas áreas de vida, são um dos exemplos comportamentais que a pesquisa procura se aprofundar. Já com relação ao acasalamento, o pesquisador responde que as fêmeas passam em média uma semana com cada macho e, após esse período, podem procurar outro para copular, possibilitando que uma mesma onça tenha diversos parceiros durante a vida.
Esta é a situação da onça Flora, que, como especificado pelo guia, teve três parceiros diferentes registrados entre os anos de 2021 e 2023: os machos Peabiru, Niti Caré e Itúra. Embora os enlaces reprodutivos da fêmea tenham sido registrados, o guia não traz nenhuma catalogação de filhotes de Flora. Diferente dela, Aroe, Marruá, Tarumã, Aurora e Chalana foram registradas com parte de sua prole na reserva e o comportamento das felinas com seus filhotes também é uma das características abordadas pelo pesquisador. Guilherme aponta que, após o nascimento, os filhotes se mantêm com a mãe por pouco mais de um ano e são ensinados, à maneira dela, como caçar e se manter vivos na natureza.
Cartilha da RPPN
“Durante os primeiros meses tem a fase de amamentação e depois o ensino do estilo de caça e das habilidades necessárias para sobreviver. As onças ensinam o seu próprio estilo de caça para os filhotes, e elas vão ter abordagens diferentes umas das outras”, diz Guilherme.
O pesquisador traz ainda um dado fora da cartilha: os machos, além de terem uma área de vida maior e andarem mais, passam menos tempo com suas mães do que as fêmeas. “A média que eles ficam junto com a mãe é cerca de um ano e meio. Pode acontecer de se dispersarem antes ou ficarem mais tempo, mas parece ter uma tendência das fêmeas a dispersarem depois. Os machos são um pouco mais precoces. Eles se desvinculam da mãe um pouco antes, já as fêmeas ainda permanecem”, explica.
Esses compartamentos são analisados e repetidos em alguns padrões. “Por exemplo, tem a família da Tarumã. É bem legal porque ela aparece em 2021 com dois filhotinhos. E aí depois ela aparece novamente com esses dois filhotes, já filhotões, no ano seguinte. E em 2024 a gente já tem registro da filhote fêmea sozinha andando ali mais ou menos perto da área de vida da mãe. E o macho a gente ainda não viu, então pode ser que ele tenha ido para mais longe. É justamente isso que nos permitiu fazer essas árvores genealógicas mais simplificadas”, esclarece.
As genealogias completas, no entanto, ainda é um trabalho em andamento. Guilherme comenta que, apesar da vontade de estabelecer os machos e fêmeas responsáveis pelos filhotes, apenas o material genético das onças confirmaria tais dados. “A gente teria que ter a amostra biológica de uma quantidade razoável de onças, o que é um pouco complicado. Embora estivéssemos tentando, precisaríamos ter um bom banco de dados genéticos para poder definir uma genealogia propriamente dita”, pondera Guilherme.
A importância do conhecimento compartilhado
Para além da construção de aprendizado científico, o gestor da RPPN, Alexandre Eneut, esclarece que divulgar os dados coletados durante a pesquisa em formato de um guia é mostrar à população, de uma maneira acessível, a biodiversidade encontrada dentro do território mato-grossense. É só a partir da informação e da educação que a sociedade tem a possibilidade de criar conexão com o meio ambiente.
“O nosso papel, como instituição social, é fazer com que essa informação chegue às pessoas. É transformar essa informação científica em linguagem popular”
Alexandre Enout, gestor da RPPN
“O nosso papel, como instituição social, é fazer com que essa informação chegue às pessoas. É transformar essa informação científica em linguagem popular. As coisas têm que ser importantes para a população, seja a conservação da onça, a pesquisa que fala da qualidade da água ou do número de espécies de plantas que a gente tem. São muitas áreas diferentes, mas tudo isso é bacana de chegar nas pessoas: é assim que elas passam a valorizar, a ver para que isso serve. Elas passam a se sensibilizar com esse trabalho, com a importância das áreas naturais”, afirma Alexandre.
O gestor destaca que o contato da população, especialmente de crianças e jovens, com a biodiversidade e com temas ambientais é fortemente influenciado pelo contexto social e pelo acesso à informação. Muitas percepções e crenças sobre a natureza são construídas a partir do convívio familiar e comunitário, o que reforça a responsabilidade das instituições em levar conhecimento técnico de forma clara e correta. Para o gestor, compartilhar informação qualificada é essencial para desconstruir mitos e ampliar a compreensão sobre a importância da conservação.
Pablo Vicente e Kethlyn Moraes/Rdnews
Por isso, um dos trabalhos realizados com a cartilha é voltado para a educação ambiental em escolas.
“Não adianta também, essa é uma visão do Sesc, de fornecer todo esse apoio, essa logística, é um custo financeiro, de tempo, de capacitação das pessoas, para que isso fique só na academia. É muito importante a gente gerar conhecimento científico. Mas, o nosso papel, como uma instituição social, é também de fazer com que essa informação chegue à população em geral”, pontua.
Biodiversidade indica equilíbrio ambiental
“A gente fica feliz de ver que a reserva tem as condições para ter essa quantidade de onças. É saber que ela está servindo ao papel para o qual foi designada, que é a conservação da biodiversidade”
Alexandre Enout, gestor da RPPN
Alexandre ressalta também que a quantidade de onças encontradas na reserva e catalogadas pelo guia representa algo muito maior: a confirmação de que o local tem condições favoráveis à vida dos felinos. O gestor explica que, quando uma área natural passa a sofrer interferências e degradações, fica muito difícil manter os animais.
“O que a gente vê em outros biomas é a fragmentação dos ambientes. Então, é uma estrada que cruza, é o uso da terra por uma atividade econômica que deixa ilhado o espaço. Esse é um dos principais problemas de conservação para animais desse tipo, que são muito exigentes de território, de recursos. A gente fica feliz de ver que a reserva tem as condições para ter essa quantidade de onças ali. É saber que ela está servindo ao papel para o qual ela foi designada, que é a conservação da biodiversidade. Essa pesquisa, assim como outras, nos fornece essa informação. Saber que riqueza é essa, o que a gente deve proteger”, finaliza.
VIDA ANIMAL Territoriais, solitárias e resilientes: estudo mostra dinâmica das onças no Pantanal Territoriais e resilientes: pesquisa mostra a vida das onças no Pantanal Em entrevista, o pesquisador responsável pelo projeto e o gestor da reserva revelam descobertas, desafios e importância da pesquisa científica ambiental
Fonte:RD News